Uma amiga que mora sozinha que me contou.

Ela olhou no relógio, eram 22h22. Deu um mal pressentimento. Mística? Numeróloga? Não, estava mais para trauma do último governo. Era fim de janeiro, um mês interminável como as primeiras noites de quem passa a morar só.
Para se acalmar, ela gostava de voltar para os seus cadernos e se perder em problemas do passado. Ao abrir a porta do guarda-roupa para procurá-los, sentiu que algo ali dentro havia se mexido. Será que foi só impressão? Não era possível! Ouvira a vida toda que morar em prédio era bom porque não tinha barata. Ainda assim, gastou com dedetização. Era só impressão. Achou um dos cadernos. Um específico e bastante especial feito por uma amiga e onde continham os primeiros registros de sua escrita. Folheou e tirou foto da capa. Encaminhou via Whatsapp pois gostava de ser (como chama quando a gente gosta de ficar voltando no passado?) nostálgica! Passou o olho pelo grupo do condomínio, crente que seria só mais um dos muitos barracos. Leu sobre uma infestação de baratinhas germânicas, outros chamavam de francesas. Tinha imagens, ela apagou tudo. Não suportava barata nesse nível. Como pesquisar no Google sem aparecer imagens? Não sabia fazer, não descobriu. Alguém sabe? Nesse meio tempo, sentiu de novo que não estava sozinha. A visão não era o seu melhor sentido, mas raramente era traída pela periférica. Tinha alguma coisa ali. Ela deu uma risadinha ao se lembrar do meme: “Ufa, não é barata, é só um espírito maligno”. O riso se dissipou, os olhos arregalaram. Era uma barata! Pequena. Pequena quanto? Era estranho vê-la se referindo às baratas dessa forma. O que era de se esperar era que ela dissesse que um monstro havia invadido seu espaço. Pequena quanto? Ela foi pegar a régua. Não mediu o cadáver, até porque ele já havia sido desovado no lixo após ser afogado no Baygon (bem que a amiga disse que o Mortein era melhor, não lhe deu ouvidos), mas mediu o que havia guardado em sua memória. Ela voltou e me disse: —1×1.
Tirou absolutamente tudo do guarda-roupa. Limpou cada coisa com Lysoform porque aprendera com a avó, que sempre usava na casa antes de viajar e na volta o cemitério de todo tipo de inseto estava formado: pernas para cima, corpos esturricados.
Cheiro forte, garganta arranhando. Foi preciso abrir portas e janelas. Por um instante, imaginou-se amanhecendo na cama, com as pernas para cima e o corpo esturricado. Fez de conta que isso jamais havia passado pela sua cabeça e resolveu ligar a tv para relaxar um pouco. Cadê o controle? Procurou em todos os lugares: dentro da geladeira, do micro-ondas, no meio dos livros, das roupas, em tudo que havia tocado naquele dia. Será que estava no lixo? Já tinha descido o lixo para não dormir com a presença do cadáver. Olhou na lateral do sofá, tirou as almofadas, olhou embaixo da cama onde a vista alcançava e nada. Dentro da mochila, em cima da mesa, no banheiro, dentro dos calçados… Nada.
— Não! Compro outro, mas não vou revirar lixo!
Ideia fixa. 3h da manhã e nada. Em poucas horas precisava acordar para ir para o trabalho. Dormir de que jeito? Deitou. Foi quase um desmaio. Aquele cheiro de Baygon, álcool e Lysoform. Sonhou que encontrava o controle e o sentimento era um grande “ufa, não estou doida”. Mal amanheceu e as buscas continuaram. Olhou para pia e avistou um pegador de comida. A cama possuía um vão que o braço não passava. Finalmente, resgate realizado, missão cumprida.
Achei simbólico ela ter perdido justamente controle.
Ah! Ela entrou em contato com a empresa de dedetização e sexta-feira vão reaplicar o produto. Nesse meio tempo, comprou cravo e cânfora e espalhou por toda parte.
Ela vai sobreviver até lá!

Uma resposta para “Uma amiga que mora sozinha que me contou.

  1. Poderia ter sido pior….poderia ter sido uma batata……🤣

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