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Era um domingo qualquer, eu precisava espairecer e um dos meus lugares preferidos no mundo para isso era a pracinha no centro do Embu das Artes. Eu havia deixado que a rotina me corroesse de tal forma que nem lembrava mais quando fora a última vez que estive por essas bandas.
Era, para mim, um lugar desses que é coringa: servia para quase tudo. Ir quando se sente muito feliz e quer comemorar algo, passear simplesmente sozinha ou acompanhada, fazer compras, tomar um sorvete, ler um livro sentada no parque ou na praça, lugar para sorrir e para ter conversas difíceis.
O ano estava quase acabando e eu precisava fazer o meu balanço tradicional. Peguei meu caderninho de anotações, meu fone de ouvido, meu celular, carteira e fui para o ponto da lotação. No caminho fui ouvindo um podcast chamado Meu inconsciente coletivo, da Folha de São Paulo, apresentado pela Tati Bernardi. Ela diz que é uma sessão de terapia aberta ao público.
O episódio era “A coragem de decidir deixar de amar alguém”. O assunto era casamento e o amor romântico, mas eu não parava de pensar numa amiga, uma pessoa que um dia foi uma grande amiga. Era dezembro, eu fiz aniversário e ela não mandou sequer uma mensagem genérica no Facebook como muitos fazem. Alguns dias depois, era aniversário dela e eu não mandei nada também. Ora. Houve quem me lembrasse da data, mas não foi porque ela não me mandou mensagem no meu aniversário, que eu sou rancorosa mas não é para tanto, foi pelo fato que fazia mais de ano que ela havia sumido da minha vida: de novo.
Era só começar a namorar que ela esquecia da minha existência. Era o namoro terminar que magicamente ela se lembrava do meu número de telefone e me chamava para comer algo em algum lugar. Mais de uma vez eu fui e ela passou o rolê todo no celular com os contatinhos dela.
Quando me dei conta, passei o ponto do parque e fui direto para a praça. Sentei na minha sorveteria predileta e pedi duas bolas: café e creme de avelã com bastante cobertura de chocolate.
Olhei para aquela taça bonita e comecei a chorar. Não sei se era TPM, se era tristeza, se era culpa por causa do maldito diabete ou se era saudade da época em que eu ia muito ali e como a vida tava mudada. A atendente perguntou se podia ajudar e eu pedi desculpas e disse que não. Estava tudo uma delícia como sempre.
No Embu das Artes aparecem pessoas vendendo sua arte, seus brincos, suas esculturas e suas poesias, é algo absolutamente corriquei ali. Na última colherada, apareceu uma mulher vestida com um vestido tipo indiano, com sandálias de couro, brincos de madeira e me abordou. Eu estava preparada para comprar um brinco de pena, ledo engano. Era uma poetisa. Ela abriu sua bolsa de fuxico e tirou um pedaço de pano desses de tecido cru com um bordado que dizia “Trago sua amiga amada de volta”. Eu ri e perguntei se seria em 7 dias como nas placas de amarração para o amor que ficavam espalhadas pelo centro de Santo Amaro. Ela riu de volta, um riso tímido. Disse que via através do meu olho uma dor e que queria me dar aquele bordado, que costumava vender mas que o coração dela disse que eu precisava.
Abracei a estranha e chorei muito. Disse que a última vez que eu havia falado com a minha amiga foi quando soube do falecimento do pai dela e que eu não estava no meu juízo perfeito. Não conseguia me recordar se eu tinha feito uma endoscopia ou colonoscopia, mas fato era de que eu estava fora de mim. Acordei às 3h da manhã e mandei mensagem explicando por cima o motivo do meu sumiço e me oferecendo para estar no velório. Ela me mandou um áudio com uma voz doce e disse que estava amparada pela família dela e era suficiente. Respeitei, mas não imaginava que seria nosso último contato.
Logo as redes sociais me avisaram do novo namorado e aí eu soube que ninguém seria capaz de trazê-la de volta.
Não vou mais procurar por ela e só nesse dia eu descobri como doía constatar isso.
— E se ela voltar algum dia por conta própria? — a poetisa me perguntou.
Eu pedi para ela tirar outro bordado da bolsa, como quem tira uma carta no tarô, para descobrirmos a resposta. Deixei bem claro que por esse eu pagaria.
Ela tirou. Era um desenho e um poema de Hilda Hilst:
“Um peixe raro de asas
As águas altas
Um aguado de malva
Sonhando o Nada.”
Aí foi a vez da moça chorar. Fiquei paralisada. Foi a minha vez de ouvir:
— Há quatro dias esse poema apareceu no meu sonho… Dizem que o chá de malva limpa o nosso carma e traz a felicidade de volta. Acredito na sabedoria popular. Não tomei o chá, mas bebi do poema. As linhas saíram de meus dedos.
A única coisa que fui capaz de dizer foi:
— Você quer ir lá em casa para provarmos um chá de malva? Devo encontrar para comprar na praça.
Ela topou.
Não trouxe a amiga amada de volta, mas se tornou uma grande amiga.
Imagens: @esoldesoledad
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