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É sobre pular de olhos fechados.


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Eu era a última a ser escolhida na educação física. Tantas vezes ouvi que eu tinha os dois pés esquerdos e ainda assim eu não era canhota. Acreditei que esportes não era pra mim. Aceitei essa limitação até um determinado dia.
Comecei a fazer um curso de teatro amador que certamente mudou muito de quem eu era e moldou muito de quem eu sou. Não me tornei uma atriz, mas acredito que me tornei um ser humano melhor depois dessa experiência. Havia um rapaz, Gabriel, com algum grau de deficiência física no grupo e eu nunca tinha convido com ninguém assim. Eram muitos exercícios para nos conhecermos, para confiarmos uns nos outros e muitas atividades físicas (meu problema).
Um dia, nosso professor disse que íamos pular corda e eu era péssima. Além de tudo, eu tinha medo da corda bater em mim, medo de pisar e cair, mas o maior deles, sem dúvidas, era o de que desistissem de mim.
Alguém disse que o rapaz que eu mencionei anteriormente ia atrapalhar o grupo. Eu, covarde, pensei que o problema dele que era visível ia se destacar, pois o meu não era tão perceptível.
O professor foi implacável:
— Todo mundo vai pular.
Eu fui num cantinho cochichar com ele:
— É que eu sou péssima, não estico a perna direito, defeito de fábrica, sabe? É que meus pais são primos.
Gastei saliva à toa.
— Todos vão pular e só vão parar quando todos conseguirem.
Depois de muitas e muitas e muitas rodadas, ninguém aguentava mais pular (ou tentar, como no meu caso) e o Gabriel conseguiu.
Eu fiquei feliz de verdade por ele. Ele não seria o último. Eu sabia como era ruim ser a última sempre. Eu desisti. Sentei no chão deprimida. Uma amiga sentou do meu lado e disse:
— Somos um time. Vamos tentar até você conseguir.
Falei que era besteira, perda de tempo. Ela disse que não era uma disputa. Que não era importante quem conseguiu primeiro ou quem teve mais dificuldade, a vitória do grupo seria quando todos conseguissem.
Nisso, três rodadas depois, eu consegui pular. Todo mundo comemorou; uns de alívio, outros de felicidade genuína
O professor mal esperou a farra acabar e soltou a soltou:
— Bebam água, descansem porque na volta todo mundo vai pular de olhos fechados.
— Impossível – eu gritei e ele riu.
Depois de tantas tentativas, que eu até perdi a conta, e de novo sendo a última, eu consegui. Chorei.
Na escola, eu era motivo de piada. Ali eu estava sendo incentivada, as pessoas realmente acreditavam que o grupo todo ia conseguir e eu fazia parte.
Muitos anos depois, eu me deparei com um desafio: um cara me procurou para um serviço de revisão e eu já era bastante experiente, achei que nada podia dar errado. Aos poucos, ele foi demonstrando suas limitações em relação à leitura e à escrita. Eu precisava revisar o texto, mas não conseguia entender o que estava escrito e era uma construção de frases confusas e desconexas. Era preciso falar sobre tantas coisas: estrutura de um texto, as características da escrita acadêmica, questões relativas à gramática e também quais eram os sentidos que deveriam ser dados àquelas frases. Era pouco tempo, era tão difícil quanto pular corda de olhos fechados. Eu pensei em negociar, desistir, devolver o dinheiro e indicar outro profissional, mas pensei que só seria capaz de entender essa situação quem já se sentiu deixado pra trás e por isso eu não o deixei.

Imagem: https://pixabay.com/pt/illustrations/esportes-dar-certo-ativo-fitness-1013903/

ATENÇÃO! Estamos em obras.Desculpe pelo transtorno – Parte 2 de 2.

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(Ding-dong)
— Oi.
— (Falando rápido, parecendo nervosa ou ansiosa) Oi. Eu sou sua vizinha de cima, sou do 202. ‘Tô curiosa com a sua obra, ela tá durando quase um ano. Você é toda misteriosa, nem sequer participa do grupo de Whatsapp ou das reuniões de condomínio. Queria saber se está tudo bem.
— Respira. Você ‘tá bem?
— ‘Tô bem! Parece o oposto? Eu te assustei? Olha, desculpa!
— ‘Tá tudo bem. Por que exatamente você veio até a minha porta?
— Por causa do maldito ar-condicionado. (Choro) Você tem? Tem alguém, que instale, p’ra indicar?
— Tenho! Vou pegar o cartão dele. Quer entrar? Vou pegar um copo d’água p’ra você.
— Desculpa. Eu nem sempre sou assim. É meu namorado. Tem que ser tudo do jeito dele. Ele tem me tirado do sério.
— É? Você já disse isso a ele?
— É o que eu mais faço da minha vida há anos. Estou quase desistindo de tudo. Perai… Seu apartamento não está em obras. Como assim? E a placa? E os boatos?
— Eu que estou em obras. Sai de um relacionamento conturbado e estou me reconstruindo. Os vizinhos falam demais, especulam demais, sabe? Esse é o cartão do moço do ar e esse é o meu, sou psicóloga. Se quiser se conhecer melhor, liga p’ra mim. Podemos começar uma obra juntas. Você conseguirá se conhecer melhor e salvar o seu relacionamento.
— O seu relacionamento consertou?
— Infelizmente, eu construía e ele desfazia. Uma de nossas brigas foi ouvida por algum vizinho enxerido e caiu no grupo do Whatsapp. A base de qualquer relacionamento é o diálogo e por isso que eu perguntei se você já tinha dito a ele que acha que tudo sempre precisa ser do jeito dele. O meu ex resolveu despejar tudo em mim de uma vez como se eu fosse uma caçamba. Foi duro aguentar.
— Poxa! Desculpa. Eu sou uma grossa mesmo.
— Você só ‘tá triste. Volte para o seu apartamento, seu namorado ‘tá te esperando para pagar o rodízio.
— (Corada) Como você soube?
— Algum vizinho ouviu e colocou no grupo. A gente precisa tomar cuidado com o que diz. Às vezes, as paredes têm ouvidos; outras vezes, os ouvidos têm paredes.
— Você ‘tá no grupo?
— Pois é, entrei ontem…

ATENÇÃO! Estamos em obras.Desculpe pelo transtorno – Parte 1 de 2.

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— Já reparou o tempo que ‘tá durando a obra da nossa vizinha debaixo?
— Quase um ano. É muito curioso.
— A placa continua lá?
— Sim, com dizeres em letras garrafais “ATENÇÃO! Estamos em obras, desculpe o transtorno”.
— Você ouve barulho?
— Que nada! É uma obra estranhamente silenciosa. Você viu os boatos que estão rolando no grupo do Whatsapp? Dizem que em uma semana ela constrói e na outra, desfaz.
— Que estranho! Ela faz parte do grupo?
— Capaz.
— Um imóvel tão pequeno. Haja criatividade para ficar refazendo as coisas. Criatividade e dinheiro. Você já conversou com ela?
— Bom dia, apenas. Pelo menos é educada.
— Eu te desafio a tocar a campainha dela e perguntar sobre a obra.
— E eu ganho o que se eu for?
— Hm… Eu pago um rodízio de comida japonesa. Topa?
— Comida é sempre meu ponto fraco. Ajuda na abordagem. Vou falar o quê?
— Pergunta se ela tem indicação de alguém que instale ar-condicionado. A gente ‘tá mesmo pensando em comprar um.
— Eu não sei se é uma boa ideia. O preço que ‘tá a energia.
— Achei que isso já ‘tava definido.
— Não quero brigar.
— Ninguém ‘tá brigando aqui.
— Tem que ser tudo sempre do seu jeito.
— Tá maluca? Eu só fiz o comentário. Não precisamos comprar se você não quiser. Eu hein?!
— Nem pense em me chamar de maluca de novo. Eu ainda vou dar motivo para ser tratada como uma maluca.
— Amor, se acalma!
— Eu ‘tava calma, mas a sua função na terra é tirar a minha paz.
— Poxa, no começo do nosso namoro você dizia que a minha calma te acalmava…
— No começo… Isso faz quantos anos? As pessoas mudam. Vou lá na vizinha.
— ‘Tá bem!