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ATENÇÃO! Estamos em obras.Desculpe pelo transtorno – Parte 1 de 2.

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— Já reparou o tempo que ‘tá durando a obra da nossa vizinha debaixo?
— Quase um ano. É muito curioso.
— A placa continua lá?
— Sim, com dizeres em letras garrafais “ATENÇÃO! Estamos em obras, desculpe o transtorno”.
— Você ouve barulho?
— Que nada! É uma obra estranhamente silenciosa. Você viu os boatos que estão rolando no grupo do Whatsapp? Dizem que em uma semana ela constrói e na outra, desfaz.
— Que estranho! Ela faz parte do grupo?
— Capaz.
— Um imóvel tão pequeno. Haja criatividade para ficar refazendo as coisas. Criatividade e dinheiro. Você já conversou com ela?
— Bom dia, apenas. Pelo menos é educada.
— Eu te desafio a tocar a campainha dela e perguntar sobre a obra.
— E eu ganho o que se eu for?
— Hm… Eu pago um rodízio de comida japonesa. Topa?
— Comida é sempre meu ponto fraco. Ajuda na abordagem. Vou falar o quê?
— Pergunta se ela tem indicação de alguém que instale ar-condicionado. A gente ‘tá mesmo pensando em comprar um.
— Eu não sei se é uma boa ideia. O preço que ‘tá a energia.
— Achei que isso já ‘tava definido.
— Não quero brigar.
— Ninguém ‘tá brigando aqui.
— Tem que ser tudo sempre do seu jeito.
— Tá maluca? Eu só fiz o comentário. Não precisamos comprar se você não quiser. Eu hein?!
— Nem pense em me chamar de maluca de novo. Eu ainda vou dar motivo para ser tratada como uma maluca.
— Amor, se acalma!
— Eu ‘tava calma, mas a sua função na terra é tirar a minha paz.
— Poxa, no começo do nosso namoro você dizia que a minha calma te acalmava…
— No começo… Isso faz quantos anos? As pessoas mudam. Vou lá na vizinha.
— ‘Tá bem!

Como nasce um pijama na maior parte dos lares brasileiros

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Primeiro, é preciso salientar que pijama é um conceito burguês demais pro meu gosto.
Dito isso, vamos encarar a trajetória.
Você compra ou ganha uma roupa nova e automaticamente ela é catalogada como “roupa de sair”. Como “sair”, leia-se qualquer ocasião especial que não se enquadra nas tarefas do dia a dia. Para essa categoria há todo um cuidado na lavagem e na forma de guardar e utilizar, pois ela precisa durar bastante nessa função.
Quando o tecido já parece gasto, deu bolinha ou qualquer sinal de desgaste, a roupa é rebaixada para a categoria “roupa de rotina”. É a roupa usada para ir para escola ou para o trabalho, na falta de um uniforme.
Lembre-se que a “roupa de rotina” já é uma roupa gasta e agora será/estará batida. Mais hora, menos hora, ela se torne inviável para essa função e sofre um novo rebaixamento: “roupa de ficar em casa”. Nessa etapa, a roupa é utilizada nos afazeres domésticos e geralmente já apresenta alguma mancha, furo ou alargada. E você pensa que o ciclo dela se cumpriu, mas ainda não.
A última categoria antes do descarte é o pijama, vulgo “roupa de dormir”, porque na maior parte dos lares brasileiros nunca sobra dinheiro para comprar uma roupa que não seja do tipo “roupa de sair”.

Imagem: https://pixabay.com/pt/photos/mulher-corpo-dor-pijamas-5941896/

Provocação

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Seu ex te transfere 1 milhão de reais por engano e liga pedindo para você devolver.
O que você responderia usando apenas 3 palavras?
1) Tempo é dinheiro.
2) É para terapia?
3) Obrigada(o) pela indenização.
4) Roubou de quem?
5) Manda o pix?

E aí?

Imagem: https://pixabay.com/pt/photos/dinheiro-d%c3%b3lares-sucesso-o-neg%c3%b3cio-1428587/

“Vou guardar para uma ocasião especial”

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Minha primeira lembrança de algo que eu guardei muito para usar numa ocasião especial eram os adesivos do caderno. Eu ficava muito nervosa porque o meu irmão dava sempre um jeito de pegar dos meus. Recentemente, encontrei uma cartela deles dentro de um caderno antigo. Pense na tristeza que me bateu. Agora o tempo passou. Não tenho mais onde colar. Isso não importa mais.
Depois, foi um conjunto com 4 perfumes que eu ganhei. Usava pouquinho para render bastante e foi mais uma guerra com o meu irmão que pegava escondido. No final, ficaram velhos e perderam o cheiro.
Por último, deixei as cobertas mais novas e bonitas para usar quando eu me mudar. Não sei quando. Vai que eu morro antes.
Chega dessa bobeira. Viver, por si só, é uma ocasião especial.

Imagem: https://pixabay.com/pt/photos/bebida-%c3%a1lcool-espumante-copo-5087479/

Um baralho usado é cheio de história

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— Bença, tio?
— Deus te abençoe!
— Tio, te trouxe um baralho de presente.
— Brigado, fia! Esse meu é cheio de história.
— O senhor me conta?
— História de gente velha vai te interessar?
— Claro! Venho te visitar pra ouvir essas histórias, tomar um golinho cafezinho, jogar uma escopa 15 e matar a saudade.
— Vamô vê se a cabeça tá boa. Essa carta aqui foi no dia que caiu da pinguinha do Nono. Essa com a bordinha dobrada, tá vendo aí? Foi do dia que estávamos jogando truco. Joaquim é terrível, marcando carta e nem assim ganhava.
— Nem roubando?
— Nem assim! Menina, se sabe jogar truco?
— Sei, mas não sei passar sinal.
— Então não sabe direito. Deve perder sempre.
Rimos
— Vou te ensinar os sinais.
— Não adianta. Eu decoro e depois esqueço.
— Nova e com a cabeça fraca assim?
— Pro senhor ver. Não fazem mais crianças como antigamente.
Rimos de novo.
Jogamos tanto escopa 15 que quando eu fui embora, fechava os olhos e via o banco da sala repleto de cartas.
Sonhei muito com o jogo e com as histórias naquela noite.
Essa rotina se repetiu por muitos anos ao longo da minha vida. Até que um problema na vista dele nos impossibilitou de jogar um carteadinho, ele falava assim.
Substituímos o baralho por histórias mais antigas. Chegamos no meu bisavô. O tio disse que ele era conhecido por João Colodino, um homem de coragem. Nunca esqueci desse dia!
Um dia, o Alzheimer chegou. Minha prima achando que ele estava esquecido e que era coisa da idade. A doença foi progredindo e em uma das minhas últimas visitas, ele não me reconheceu. Eu fiquei triste, não vou negar, mas antes de eu ir embora ele me perguntou da menina de São Paulo que gostava de jogar baralho com ele. Abri um sorriso gigante. As memórias mais antigas ainda estavam ali. Eu disse que ela não pode ir (achei que explicar poderia trazer confusão e sofrimento para ele), mas mandou um abraço. Ele mandou outro e disse que gostava muito de jogar com ela.
Somos feitos de histórias.
Mesmo que algo aconteça, como o Alzheimer, e a gente esqueça, as histórias vão viver.
Todas essas ainda vivem em mim, tio Juscelino.

Imagem: https://pixabay.com/pt/photos/baralho-de-cartas-cartas-jogo-1755797/

Juventude é um estado de espírito

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Eu mesma já nasci velha.
Antes da pré-escola, eu não gostava de receber visitas que não eram do meu convívio habitual. Quando elas chegavam, eu me escondia atrás da porta do quarto ou debaixo da cama. Descobri cedo que não sou obrigada a nada.
No prézinho, no dia de levar brinquedo eu levava um gibi. Porque sim! Na escola, eu era aquela que resmungava para fazer trabalho em grupo. Era no mínimo meia-hora arrumando briga. Misericórdia! Até o fatídico dia do Índio (na minha época a gente falava assim) e eu tretei com metade da sala Por quê? Porque a minha ideia era ótima, mas eu não era popular e ninguém me ouvia. Fiz ouvir, no berro. A professora falava que trabalho em grupo iria nos treinar pra vida adulta: lidar com pessoas e resolver conflitos.
Quando comecei a trabalhar com telemarketing, teve uma festa do farol. Solteiros iam de camiseta verde; comprometidos, de vermelha; indecisos, de amarela. Eu fui de preto. Eu, hein!
Na faculdade, peguei uma vez uma menina falando mal de mim no banheiro no intervalo de um dia de trabalho em grupo:
— É nova, mas tem um espírito de velho — e quer saber? Ela não tava errada não. Eu sou chata com os meus compromissos. Sempre fui.
Passei dos 30, troquei de emprego e soube que a minha antecessora fazia festa temática e o povo se fantasiava. Ela era animada e se dava bem com todo mundo.
Eu, por fora: — Que legal!
Eu, por dentro: — Sabe quando eu vou fazer igual? É nunca!
É preciso normalizar o espírito velho que habita num corpo novo, mas precisa ser logo. Se demorar, meu corpo já estará condizente com o meu espírito.

O beija-flor e o besouro rola-bosta: estética e funcionalidade.

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Beija-flor de cores cintilantes e um coração enorme, literalmente falando.
Ave típica das Américas, de bico fino e longo: ferramenta perfeita para extração de néctar.
O bater de suas asas pode ser de até 80 vezes por segundo (alguém cronometrou).
Peça-chave na polinização das plantas, poesia da natureza.


Besouro rola-bosta é bicho bruto, de origem africana.
Seu ciclo de vida é uma metamorfose completa, com quatro fases bem distintas: ovo, larva, pupa e adulto. Nunca vi ninguém que esteja em constante mutação se comparar com ele. Desprovido completamente de beleza, esse espaço é tomado pelas borboletas.
Seus hábitos alimentares são peculiares. A espécie é coprófaga, ou seja, adultos e larvas se alimentam de fezes.
Antes de criticá-lo, saiba que ele é um adubador.
Ao rolar a bosta, como o próprio nome diz, ele exerce uma função importante no ciclo da matéria orgânica. Enterrar as fezes é parte do processo de adubar a área e auxiliar na decomposição do material.

Fontes:
https://www.petz.com.br/blog/curiosidades/curiosidades-sobre-beija-flor/
https://pt.wikipedia.org/wiki/Rola-bosta-africano

Elogio do aprendizado e os clichês tão verdadeiros

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O que você aprende, ninguém rouba de você.
Aprenda a aprender.
Aprenda a gostar de aprender.
Conhecimento é poder.
Nunca humilhe ninguém que possua conhecimentos diferentes dos seus.
Conhecimento liberta, muda vidas.
Leia Bertolt Brecht.
Assuma o comando.

A vida adulta

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Um dia você é criança e no outro, está no mercado gritando “inferno” igual a Carminha de Avenida Brasil pois, absolutamente, tudo está caro. E, se não bastasse isso, é um tal de máscara no queixo ou nariz pra fora.
Você descobre que não é possível preparar a carne se ela estiver congelada, que se você não marcar seus exames médicos ninguém mais vai fazer isso por você e que se não separar as roupas coloridas das brancas antes de lavar vai manchar tudo.
A vida é cheia de critérios: alguns muito objetivos, outros nem tanto assim.
A vida adulta começa, oficialmente, pelo menos aqui no Brasil, no dia em que completamos 18 anos. Alguns ganham um carro de presente, outros ganham a carteira de habilitação, uns ganham a oportunidade de entrar no mercado de trabalho, mas ninguém, absolutamente ninguém, ganha um manual de instruções.
E mesmo que viesse, a molecada não lê nem papel de pão.
E eu te pergunto: você entendeu o que é para fazer?
Explica aqui nos comentários.

Pelo direito de toda criança conhecer, pelo menos uma vez na vida, uma roça.

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A entidade “mercado”, sendo ele um simples mercado, super ou até mesmo hiper, nos afasta da vida propriamente dita.
A indústria plastifica tudo e deixa com cara de fabricado pelo homem. Deus tá vendo essa patifaria aí.
Há quem pense, e eu não estou brincando, que o leite brota na caixinha. Nem reflete a respeito dos animais abatidos e dispostos nas prateleiras para nossa escolha, de quem pode por eles pagar, se um dia corriam felizes por aí (espero que tenham tido uma vidinha boa, ainda que breve). As carnes são apenas carnes. A mesma lógica é aplicada às folhas de um modo geral. Eu mesma já comprei escarola no lugar de couve num dia de feijoada lá em casa.
E o açúcar que adoçou seu cafezinho. Veio de onde?
José Ribamar Ferreira tem uma resposta, uma provocação. Nunca ouviu falar nele? Já sim, bobo! É o Ferreira Gullar. Se vivo estivesse, completaria 91 anos hoje.
Leia com atenção.

O açúcar

O branco açúcar que adoçará meu café
Nesta manhã de Ipanema
Não foi produzido por mim
Nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.

Vejo-o puro
E afável ao paladar
Como beijo de moça, água
Na pele, flor
Que se dissolve na boca. Mas este açúcar
Não foi feito por mim.

Este açúcar veio
Da mercearia da esquina e
Tampouco o fez o Oliveira,
Dono da mercearia.
este açúcar veio
De uma usina de açúcar em Pernambuco
Ou no Estado do Rio
E tampouco o fez o dono da usina.

Este açúcar era cana
E veio dos canaviais extensos
Que não nascem por acaso
No regaço do vale.

Em lugares distantes,
Onde não há hospital,
Nem escola, homens que não sabem ler e morrem de fome
Aos 27 anos
Plantaram e colheram a cana
Que viraria açúcar.
Em usinas escuras, homens de vida amarga
E dura
Produziram este açúcar
Branco e puro
Com que adoço meu café esta manhã
Em Ipanema.