Quantos perrengues são necessários até completar a travessia em busca de um sonho?

Textos de sexta: 6/52

Ela me telefonou. Fato relevante é que ela nunca me telefonou nesses mais de 15 anos de amizade. Ela não gostava de telefone, mesmo antes disso virar moda, achava que o aparelho deixava as conversas mornas. Ela era católica, mas tinha medo de ler o livro do Apocalipse, no entanto, sabia uma passagem de cor “Conheço as tuas obras, que nem és frio nem quente; quem dera foras frio ou quente! Assim, porque és morno, e não és frio nem quente, vomitar-te-ei da minha boca.” Capítulo 3, versículos 15 e 16. Ela gostava dessa passagem pelo simbolismo e pela mesóclise. Lembro-me de a ter levado na casa de uma tia no interior do estado certa vez e nos foi servido um café praticamente morno. Eu juro que pensei que ela iria soltar a referida citação, mas não. Eis que ela me lança um “o bom do café morno é que ele não causa câncer no esôfago” e tomou a xícara toda em uma golada só.
Sem telefone, as possibilidades de comunicação eram: presenciais, até que eu resolvi sair do país; Whatsapp e e-mail. Ela não se importava em mandar áudios enormes, eram tão extensos que eu e alguns outros poucos amigos sempre chamávamos de podcast. Havia nela a tranquilidade de continuar ouvindo as nossas mensagens na velocidade 1x, mesmo quando o mundo pedia urgência.
Com a mudança de fuso horário, o melhor horário para conversarmos era 10h no Brasil e 13h aqui na Inglaterra, justamente a hora do meu almoço. Não que eu tivesse realmente uma hora de almoço, mas você entendeu. Ela se queixava que me fazia companhia enquanto eu comia, mas que ela comia sozinha. Ela come devagar, então mais da metade do horário era gasto com o propósito adequado. Sugeri preencher o restante com leitura, mas ela não conseguia começar a ler com o tempo marcado. É do tipo de pessoa que precisa terminar o capítulo, sabe?
Era meio-dia e meia e eu já me encontrava na terceira garfada, mas precisei atender. Ela chorava copiosamente. Eu pedi para respirar fundo 3x e me contar o que aconteceu.
Ouvi que ela era mesquinha. Como podia falar de suas angústias enquanto o mundo vivia verdadeiras tragédias?”
Tive que explicar, mais uma vez, que não se trata de uma rinha de sofrimento. Cada sofrimento é válido e precisa ser acolhido.
“Estou aqui com o jornal aberto. Ouça: ‘População em situação de rua cresceu 31% nos últimos dois anos em São Paulo. Atualmente, há 31.884 pessoas vivendo nas ruas da capital paulista, segundo censo divulgado pela prefeitura’. Tem mais: ‘Aluguel de moradia representa um aumento de 27,09% em apenas dois anos’. Nem vou começar a falar sobre a fome, sobre o descaso do governo com a pandemia…”.
E o choro voltou com tudo e nitidamente com muito catarro. Isso não me incomodava nunca, mas aquele dia em especial, na hora do almoço, foi um pouco puxado, confesso. Tentei quebrar o gelo soltando uma piadinha: Tem uma conta no Twitter chamada “White people problems”. Você sabe inglês, não é? Ou pelo menos sabe o suficiente para entender onde eu quero chegar.
Ela não riu. Tentativa de humor fracassada com sucesso. Logo me perguntou quantos pilares a gente pode abrir mão sem que o nosso alicerce desmoronasse? Eu, sinceramente, não sei. Não faço ideia. “Não é um deslize. Sinto que estou desabando como as casas, após as chuvas de verão, que resultam em mortes e destruição. Por quantos perrengues uma pessoa precisa passar até conseguir alcançar seus anseios? Até agora foram 15 anos de aborrecimento com um chefe que não se importa comigo, que convive dia a dia, mas não me conhece. Você sabe o quanto eu já chorei no banheiro da firma? Eu ando com colírio na bolsa. Não é um relacionamento saudável. Aguentei tudo em nome do sonho da casa própria. Depois, foi a novela para usar o meu FGTS. Eu tive que provar tantas vezes que eu sou eu. Olha, chegou um momento que até eu passei a duvidar. Será que eu roubei a identidade dessa pessoa e depois tive amnésia? Loucura. É isso que os bancos fazem com a gente. E a construtora também não é santa. No capitalismo não há espaço para inocência. Foram 6 fucking meses para pegar a chave. O que não foi um problema tão grande porque meu casamento foi desmarcado por causa da pandemia”.
Questionei se havia nova data até para que eu pudesse me programar para atravessar o oceano Atlântico. Para minha assombrosa surpresa, ela me disse que descobriu que aquele puto (nunca gostei dele) estava saindo com uma colega de trabalho dela (também nunca gostei dessazinha). Ela descobriu fazia umas duas semanas, por isso não respondia mais as mensagens matinais. Foi assim: ela resolveu tomar um sorvete, estava um dia terrivelmente quente e o ar-condicionado não estava sendo ligado por causa do vírus. Mandou uma mensagem para o puto avisando que ia ao shopping, para que ele não se preocupasse por conta da demora. Na cabeça dele, ela iria fazer comprar e demorar horas, só que ela tomou só uma casquinha e partiu para a casa dele. Chegando lá, pegou os dois na cama, pelados. O olho esquerdo tremia. Sacou seu colírio da bolsa e pingou. A segunda reação foi abrir uma mala e ir juntando as tralhas dela. Não proferiu palavra alguma. “Tenho medo de morrer entalada por causa deles. Não bastasse isso, a obra…”
Para o seu consolo, não conheço uma viva alma que fez obra e não se estressou. Se há algo em comum na humanidade, para além das questões biológicas, é que estar em obras é estar com os nervos à flor da pele.
Minha tentativa de consolo malogrou. Ela ficou enfurecida.
“Não estou pedindo favor. Eu paguei com o dinheiro que ganhei sendo esmagada todos os dias durante quatro horas no transporte público. Eu troquei pelo meu frescor, pela minha juventude. Eu precisei ouvir que sou paga para executar e não para pensar. Eu paguei!!! (Tão alto que quase não precisaríamos de telefone para que eu pudesse ouvir do outro continente). Por que nem assim eu sou respeitada? Por que nem as relações meramente comerciais dão certo? Eu preciso de ajuda. Você está formada! Tem sua carteirinha da OAB. Será útil! Eu me vi dando socos na boca e pontapés, rasgando contratos e cuspindo na cara das pessoas. Sabe o que é pior? Eu fiquei mais calma depois disso!”
A agressão ocorreu apenas nos pensamentos dela e, ainda bem, pensar não é crime. Se é pecado já não sei, porém deduzo que seja. Aqui, estamos nos referindo ao Direito à perversão que, no Direito Penal, consiste em planejar atos contrários à lei sem exteriorizá-los. Como ela não é nem doida de postar um tipo de coisa como essa em redes sociais sem falar comigo, fiquei tranquila. Expliquei que era preciso pensar em ações dentro da lei. Do mesmo jeito que se firma um contrato, desfaz. Reincidir o acordo firmado anteriormente é chamado de distrato e é legal nos dois sentidos: está dentro da lei e fará bem a saúde mental dela.
Ao longo da conversa, percebi que ela se acalmou. Algo que eu disse a fez desistir de desistir. Foi nesse momento que ela me disse que não desejava um grande mal nem para alguém que até meia hora antes era o alvo do seu ódio: arquitetos, mestres de obra, pedreiros, ajudantes, lojas de material de construção… Que a conversa foi a caçamba que ela precisava para entulhar o que sobrou da negação, do isolamento, da raiva, das tentativas de barganha e da depressão. Finalmente, ela aceitava que passava aquilo porque precisava passar.
Quando questionada, de seus lábios saiu algo que soou como música para os meus ouvidos:
“Sinceridade é uma das suas melhores qualidades! ‘Sincero’ é de origem romana e reza a lenda que eles fabricavam vasos e consertavam as falhas com uma cera especial, mas quando a peça era aquecida por quaisquer que fossem os motivos, a cera derretia e as imperfeições eram reveladas. Foi daí que as pessoas começaram a comprar peças “sine ceras” (sem ceras), ou seja, sinceras como você: meu vaso valioso!”
Tenho que admitir, naquele exato momento, meus olhos se encheram de lágrimas. Ouvir de uma grande amiga que ela preza pela minha sinceridade é algo tocante. Ela notou que mexeu comigo, claro, e completou: “Não seja boba! Eu li isso em alguma parte da internet. A etimologia verdadeira é latina ‘sincerus’ e significa ‘é limpo ou puro’. Você é muito emocionada, menina! Agora preciso ir, vou escolher o piso. Fique de olho no seu celular porque eu vou te mandar muitas fotos. Bom almoço!”

https://pixabay.com/pt/photos/ponte-ponte-de-madeira-corrim%c3%a3o-4562163/

Uma resposta para “Quantos perrengues são necessários até completar a travessia em busca de um sonho?

  1. Quantos? Te digo: inúmeros, mas não o suficiente para te fazer desistir!
    E para ser sincero, busquei “sincero” com o Pasquale…….

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