Textos de sexta: 29/52
Esses dias passou um filme na televisão chamado “Superação – O milagre da fé”. Foi baseado numa história real, e eu nem sabia e mesmo assim eu vi e chorei, de um menino que se afoga, os médicos não acreditam que ele pode sobreviver ou, se sobreviver ele terá muita sequelas, e vão acontecendo pequenos milagres até acontecer o grande milagre. Duvido muito que acreditariam que um milagre aconteceu se ele não se recuperasse plenamente. É o tipo de milagre digno de filme.
Em uma das cenas, as pessoas começam a se questionar por que o milagre aconteceu com aquele menino em especial e isso me incomodou bastante, não que eu ache que não deveria existir essa cena, mas porque aquela pergunta já rondou meu imaginário também: pessoas boas, que praticam o bem, cheias de planos sonhos ainda não realizados e que simplesmente deixam esse plano espiritual. Até agora não encontrei nenhuma resposta.
Posso dizer que eu sou uma pessoa católica com leves dúvidas sobre a existência ou não de Deus em alguns momentos, mas não em todos. Enfim, a hipocrisia.
Eu me indago quando penso na discrepância: uns com tanto e outros com tão pouco, quando sei de mais uma chacina…
A verdade é que quando eu era criança não tinha dúvida nenhuma, tinha certeza que Deus existia. A primeira vez que me deparei com a morte de uma pessoa que eu conhecia, depois que eu já me entendia por gente, foi no ensino fundamental. Na volta das férias não teve conversinha, não teve redação sobre o que havíamos feito nos dias livre, só teve a secretária da escola passando de sala em sala contando que o menino da outra sala tinha morrido afogado e que nunca mais ia voltar. “Nunca mais” como isso é forte, né? Ele não era meu amigo, hoje não lembro do nome nem da fisionomia, mas no dia isso bateu dolorido, disso eu me lembro.
Não sei quantos anos se passaram até que a morte chegou mais perto. Uma pessoa muito próxima e querida adoeceu. Uma pessoa que se cuidava muito, não tomava remédio por conta e quando sabia de alguma coisa que fazia mal para saúde já eliminava aquilo da vida ou eliminava o máximo possível. Era uma pessoa que a gente tinha certeza que ia ter uma vida muito saudável e próspera. Contrariando as estatísticas, essa pessoa adoeceu e ao fazer exames foi descoberto que era algo muito grave. Era grave no nível de não ter cura. Eu tinha 12 anos e não sabia muito bem o que “não ter cura” significava, pois alguém teve que me dizer, com todas as letras, que aquela pessoa ia morrer. Lembro-me da minha revolta e de falar que não isso não ia acontecer, afinal, eu tinha muita fé. Ia rezar e pedir para Deus, porque é isso que a gente faz com a nossa fé, era o que eu pensava. Fiquei um bom tempo rezando, enviando muitos pensamentos positivos. De verdade, era uma fé muito poderosa, mas a pessoa não estava melhorando e não tinha nenhuma expectativa de melhorar.
Aí, uma senhora muito, muito temente a Deus, muito importante para mim, muito forte e muito querida me disse que eu não devia pedir por mim porque eu não queria sofrer e porque eu não queria perder essa pessoa. Deus deveria fazer o que fosse melhor para ela, a que adoeceu.
Aquilo bateu atravessado em mim, entretanto eu não podia responder. Então, engoli seco, mas pensei “E os milagres, eles acontecem. Eu tenho fé, frequento a igreja.” Nessa hora, comecei a achar que Deus tinha que me provar sua existência e seus milagres.
Essa senhora continuava me dizendo que existem grandes milagres, aqueles dignos de filme como ao que eu assisti essa semana, mas que existem também os pequenos milagres, que é quando a gente pede para Deus fazer o que for melhor para pessoa e ele atende. Eu devia mudar as minhas orações e usar minha fé nessa direção. Um pouco a contra gosto, um pouco sentindo que eu estava traindo a minha fé e um pouco achando que eu estava traindo aquela pessoa que tava doente, segui os conselhos da senhora.
Em alguns poucos dias, a pessoa que estava doente se foi e foi uma dor absurda. Tive muita dificuldade de digerir tudo aquilo e eu escutei algumas pessoas falando que o sofrimento ali tinha acabado. Eu só pensava, e olhava para todo mundo que tava lá, que estava todo mundo sofrendo e como é que o sofrimento tinha acabado? Eu não entendia que eles estavam falando de quem se foi e não de quem ficou. A minha seta estava muito voltada para mim ainda. O tempo passou, achava que isso era o máximo que eu conseguia pedir: para Deus fazer o que fosse melhor para pessoa.
De vez em quando eu ainda refletia sobre a frase “se há 1% de chance, há esperança”. E algo muito válido para tudo que a gente pode mudar, mas a gente tem que entender que somos feitos de uma estrutura óssea, coberta por uma carne, ou seja, somos frágeis, impotentes e finitos.
A gente tá vivendo num com tanta tecnologia, com a medicina tão evoluída e que faz a gente acreditar que a gente está mais perto dos milagres, mas não está!
Fiquei adulta, a vida foi acontecendo, até que essa senhora adoeceu. Novamente, ouvi que não tinha cura. Nessa altura, já sabia que não ter cura não é necessariamente que a pessoa vai morrer, como me explicaram quando eu era criança até porque há pessoas que convivem com doenças que não tem cura, mas elas não vão morrer disso, elas vão morrer com isso e nesse caso a preposição faz muita diferença.
Infelizmente, ali não era um caso de “morrer com isso”, mas sim “disso”. A finitude estava batendo na nossa porta, esmurrando.
Dessa vez, sabia para quem que eu tinha que apontar a seta. Finalmente, eu tinha aprendido isso e que lindo que foi ela que me ensinara.
Segui o meu ritmo, pedi para Deus fazer o que fosse melhor para ela e repetia isso dentro da minha cabeça.
O tempo foi passando, a doença foi progredindo e, em um dia muito complicado, a gente tava no hospital. Sentia que seria particularmente difícil.
Sabia que eu tinha que estar ali e que provavelmente ia ser uma das noites mais difíceis da minha vida e é até hoje.
Eu quis ficar no hospital e hoje, olhando em retrospecto, percebo que o meu organismo estava tentando me proteger. Sentia um sono que não se cabia em mim.
Conforme eu acordava, via toda aquela situação, tanto sofrimento e vi aquela senhora juntar as mãos e pedir para Nossa Senhora para ter piedade dela. Naquele momento, meu olho encheu de lágrima e eu não pisquei porque se eu piscasse eu ia desabar. Só quem já teve que segurar um choro na vida, um choro tão importante, sabe o que é isso!
Chegava a hora de eu ir além. Não dava mais só para pedir a Deus para fazer o que fosse melhor, eu tinha que dizer para Deus que eu tava ali e que queria que a vontade dela fosse atendida, por mais que isso me doesse (e ainda dói), por mais que parecesse que eu estava traindo tudo, mas era um sentimento tão verdadeiro, vindo do fundo do meu coração.
Esqueci de contar. Um tempo antes, um médico disse, ao saber da doença, que a única coisa que ele podia desejar era que ela sofresse o menos possível. Achei que ele tinha sido cruel, porque eu não tinha entendimento. Depois de ver tanto sofrimento, tudo ficou mais claro.
Um pequeno milagre aconteceu. Ela não ficou sofrendo. Como não foi o milagre da salvação, a gente tem mais dificuldade de enxergar como milagre.
Aquela noite difícil me ensinou a ser um pouco mais humana, a ouvir mais a sabedoria dos que vieram antes de nós. Quando via alguém em luto ou dor, tinha vontade de contar essa história, mas tudo tem seu tempo e a gente tem que respeitar. Tinha vontade de contar, mas não sabia se as pessoas tinham vontade de ouvir. A seta tinha que estar apontada para o outro e não para mim, essa foi uma das lições mais importantes que eu recebi dessa senhora e olha que não foram poucas, não foram poucas.
Hoje consigo enxergar os pequenos milagres, nem sempre é possível porque deixamos a rotina nos dominar, mas é como quando sei que uma pessoa que está muito depressiva conseguiu tomar um banho; quando uma pessoa que está tendo sua capacidade posta em dúvida e vai lá, faz um trabalho lindo, colorido e esfrega na cara da sociedade que ela é capaz disso e do que ela quiser. Ah! Isso enche o meu coração de alegria!
O que eu quero agora, com a seta apontada totalmente para mim, é que esse texto chegue em pelo menos uma pessoa que precise lê-lo. Se isso acontecer, ao menos uma vez, terá valido a pena ter exposto os meus sentimentos.
Meus sentimentos!
Imagem retirada do livro “Malvados” de André Dahmer
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