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Pequenos milagres e meus sentimentos

Textos de sexta: 29/52

Esses dias passou um filme na televisão chamado “Superação – O milagre da fé”. Foi baseado numa história real, e eu nem sabia e mesmo assim eu vi e chorei, de um menino que se afoga, os médicos não acreditam que ele pode sobreviver ou, se sobreviver ele terá muita sequelas, e vão acontecendo pequenos milagres até acontecer o grande milagre. Duvido muito que acreditariam que um milagre aconteceu se ele não se recuperasse plenamente. É o tipo de milagre digno de filme.
Em uma das cenas, as pessoas começam a se questionar por que o milagre aconteceu com aquele menino em especial e isso me incomodou bastante, não que eu ache que não deveria existir essa cena, mas porque aquela pergunta já rondou meu imaginário também: pessoas boas, que praticam o bem, cheias de planos sonhos ainda não realizados e que simplesmente deixam esse plano espiritual. Até agora não encontrei nenhuma resposta.
Posso dizer que eu sou uma pessoa católica com leves dúvidas sobre a existência ou não de Deus em alguns momentos, mas não em todos. Enfim, a hipocrisia.
Eu me indago quando penso na discrepância: uns com tanto e outros com tão pouco, quando sei de mais uma chacina…
A verdade é que quando eu era criança não tinha dúvida nenhuma, tinha certeza que Deus existia. A primeira vez que me deparei com a morte de uma pessoa que eu conhecia, depois que eu já me entendia por gente, foi no ensino fundamental. Na volta das férias não teve conversinha, não teve redação sobre o que havíamos feito nos dias livre, só teve a secretária da escola passando de sala em sala contando que o menino da outra sala tinha morrido afogado e que nunca mais ia voltar. “Nunca mais” como isso é forte, né? Ele não era meu amigo, hoje não lembro do nome nem da fisionomia, mas no dia isso bateu dolorido, disso eu me lembro.
Não sei quantos anos se passaram até que a morte chegou mais perto. Uma pessoa muito próxima e querida adoeceu. Uma pessoa que se cuidava muito, não tomava remédio por conta e quando sabia de alguma coisa que fazia mal para saúde já eliminava aquilo da vida ou eliminava o máximo possível. Era uma pessoa que a gente tinha certeza que ia ter uma vida muito saudável e próspera. Contrariando as estatísticas, essa pessoa adoeceu e ao fazer exames foi descoberto que era algo muito grave. Era grave no nível de não ter cura. Eu tinha 12 anos e não sabia muito bem o que “não ter cura” significava, pois alguém teve que me dizer, com todas as letras, que aquela pessoa ia morrer. Lembro-me da minha revolta e de falar que não isso não ia acontecer, afinal, eu tinha muita fé. Ia rezar e pedir para Deus, porque é isso que a gente faz com a nossa fé, era o que eu pensava. Fiquei um bom tempo rezando, enviando muitos pensamentos positivos. De verdade, era uma fé muito poderosa, mas a pessoa não estava melhorando e não tinha nenhuma expectativa de melhorar.
Aí, uma senhora muito, muito temente a Deus, muito importante para mim, muito forte e muito querida me disse que eu não devia pedir por mim porque eu não queria sofrer e porque eu não queria perder essa pessoa. Deus deveria fazer o que fosse melhor para ela, a que adoeceu.
Aquilo bateu atravessado em mim, entretanto eu não podia responder. Então, engoli seco, mas pensei “E os milagres, eles acontecem. Eu tenho fé, frequento a igreja.” Nessa hora, comecei a achar que Deus tinha que me provar sua existência e seus milagres.
Essa senhora continuava me dizendo que existem grandes milagres, aqueles dignos de filme como ao que eu assisti essa semana, mas que existem também os pequenos milagres, que é quando a gente pede para Deus fazer o que for melhor para pessoa e ele atende. Eu devia mudar as minhas orações e usar minha fé nessa direção. Um pouco a contra gosto, um pouco sentindo que eu estava traindo a minha fé e um pouco achando que eu estava traindo aquela pessoa que tava doente, segui os conselhos da senhora.
Em alguns poucos dias, a pessoa que estava doente se foi e foi uma dor absurda. Tive muita dificuldade de digerir tudo aquilo e eu escutei algumas pessoas falando que o sofrimento ali tinha acabado. Eu só pensava, e olhava para todo mundo que tava lá, que estava todo mundo sofrendo e como é que o sofrimento tinha acabado? Eu não entendia que eles estavam falando de quem se foi e não de quem ficou. A minha seta estava muito voltada para mim ainda. O tempo passou, achava que isso era o máximo que eu conseguia pedir: para Deus fazer o que fosse melhor para pessoa.
De vez em quando eu ainda refletia sobre a frase “se há 1% de chance, há esperança”. E algo muito válido para tudo que a gente pode mudar, mas a gente tem que entender que somos feitos de uma estrutura óssea, coberta por uma carne, ou seja, somos frágeis, impotentes e finitos.
A gente tá vivendo num com tanta tecnologia, com a medicina tão evoluída e que faz a gente acreditar que a gente está mais perto dos milagres, mas não está!
Fiquei adulta, a vida foi acontecendo, até que essa senhora adoeceu. Novamente, ouvi que não tinha cura. Nessa altura, já sabia que não ter cura não é necessariamente que a pessoa vai morrer, como me explicaram quando eu era criança até porque há pessoas que convivem com doenças que não tem cura, mas elas não vão morrer disso, elas vão morrer com isso e nesse caso a preposição faz muita diferença.
Infelizmente, ali não era um caso de “morrer com isso”, mas sim “disso”. A finitude estava batendo na nossa porta, esmurrando.
Dessa vez, sabia para quem que eu tinha que apontar a seta. Finalmente, eu tinha aprendido isso e que lindo que foi ela que me ensinara.
Segui o meu ritmo, pedi para Deus fazer o que fosse melhor para ela e repetia isso dentro da minha cabeça.
O tempo foi passando, a doença foi progredindo e, em um dia muito complicado, a gente tava no hospital. Sentia que seria particularmente difícil.
Sabia que eu tinha que estar ali e que provavelmente ia ser uma das noites mais difíceis da minha vida e é até hoje.
Eu quis ficar no hospital e hoje, olhando em retrospecto, percebo que o meu organismo estava tentando me proteger. Sentia um sono que não se cabia em mim.
Conforme eu acordava, via toda aquela situação, tanto sofrimento e vi aquela senhora juntar as mãos e pedir para Nossa Senhora para ter piedade dela. Naquele momento, meu olho encheu de lágrima e eu não pisquei porque se eu piscasse eu ia desabar. Só quem já teve que segurar um choro na vida, um choro tão importante, sabe o que é isso!
Chegava a hora de eu ir além. Não dava mais só para pedir a Deus para fazer o que fosse melhor, eu tinha que dizer para Deus que eu tava ali e que queria que a vontade dela fosse atendida, por mais que isso me doesse (e ainda dói), por mais que parecesse que eu estava traindo tudo, mas era um sentimento tão verdadeiro, vindo do fundo do meu coração.
Esqueci de contar. Um tempo antes, um médico disse, ao saber da doença, que a única coisa que ele podia desejar era que ela sofresse o menos possível. Achei que ele tinha sido cruel, porque eu não tinha entendimento. Depois de ver tanto sofrimento, tudo ficou mais claro.
Um pequeno milagre aconteceu. Ela não ficou sofrendo. Como não foi o milagre da salvação, a gente tem mais dificuldade de enxergar como milagre.
Aquela noite difícil me ensinou a ser um pouco mais humana, a ouvir mais a sabedoria dos que vieram antes de nós. Quando via alguém em luto ou dor, tinha vontade de contar essa história, mas tudo tem seu tempo e a gente tem que respeitar. Tinha vontade de contar, mas não sabia se as pessoas tinham vontade de ouvir. A seta tinha que estar apontada para o outro e não para mim, essa foi uma das lições mais importantes que eu recebi dessa senhora e olha que não foram poucas, não foram poucas.
Hoje consigo enxergar os pequenos milagres, nem sempre é possível porque deixamos a rotina nos dominar, mas é como quando sei que uma pessoa que está muito depressiva conseguiu tomar um banho; quando uma pessoa que está tendo sua capacidade posta em dúvida e vai lá, faz um trabalho lindo, colorido e esfrega na cara da sociedade que ela é capaz disso e do que ela quiser. Ah! Isso enche o meu coração de alegria!
O que eu quero agora, com a seta apontada totalmente para mim, é que esse texto chegue em pelo menos uma pessoa que precise lê-lo. Se isso acontecer, ao menos uma vez, terá valido a pena ter exposto os meus sentimentos.
Meus sentimentos!

Imagem retirada do livro “Malvados” de André Dahmer

Quantos perrengues são necessários até completar a travessia em busca de um sonho?

Textos de sexta: 6/52

Ela me telefonou. Fato relevante é que ela nunca me telefonou nesses mais de 15 anos de amizade. Ela não gostava de telefone, mesmo antes disso virar moda, achava que o aparelho deixava as conversas mornas. Ela era católica, mas tinha medo de ler o livro do Apocalipse, no entanto, sabia uma passagem de cor “Conheço as tuas obras, que nem és frio nem quente; quem dera foras frio ou quente! Assim, porque és morno, e não és frio nem quente, vomitar-te-ei da minha boca.” Capítulo 3, versículos 15 e 16. Ela gostava dessa passagem pelo simbolismo e pela mesóclise. Lembro-me de a ter levado na casa de uma tia no interior do estado certa vez e nos foi servido um café praticamente morno. Eu juro que pensei que ela iria soltar a referida citação, mas não. Eis que ela me lança um “o bom do café morno é que ele não causa câncer no esôfago” e tomou a xícara toda em uma golada só.
Sem telefone, as possibilidades de comunicação eram: presenciais, até que eu resolvi sair do país; Whatsapp e e-mail. Ela não se importava em mandar áudios enormes, eram tão extensos que eu e alguns outros poucos amigos sempre chamávamos de podcast. Havia nela a tranquilidade de continuar ouvindo as nossas mensagens na velocidade 1x, mesmo quando o mundo pedia urgência.
Com a mudança de fuso horário, o melhor horário para conversarmos era 10h no Brasil e 13h aqui na Inglaterra, justamente a hora do meu almoço. Não que eu tivesse realmente uma hora de almoço, mas você entendeu. Ela se queixava que me fazia companhia enquanto eu comia, mas que ela comia sozinha. Ela come devagar, então mais da metade do horário era gasto com o propósito adequado. Sugeri preencher o restante com leitura, mas ela não conseguia começar a ler com o tempo marcado. É do tipo de pessoa que precisa terminar o capítulo, sabe?
Era meio-dia e meia e eu já me encontrava na terceira garfada, mas precisei atender. Ela chorava copiosamente. Eu pedi para respirar fundo 3x e me contar o que aconteceu.
Ouvi que ela era mesquinha. Como podia falar de suas angústias enquanto o mundo vivia verdadeiras tragédias?”
Tive que explicar, mais uma vez, que não se trata de uma rinha de sofrimento. Cada sofrimento é válido e precisa ser acolhido.
“Estou aqui com o jornal aberto. Ouça: ‘População em situação de rua cresceu 31% nos últimos dois anos em São Paulo. Atualmente, há 31.884 pessoas vivendo nas ruas da capital paulista, segundo censo divulgado pela prefeitura’. Tem mais: ‘Aluguel de moradia representa um aumento de 27,09% em apenas dois anos’. Nem vou começar a falar sobre a fome, sobre o descaso do governo com a pandemia…”.
E o choro voltou com tudo e nitidamente com muito catarro. Isso não me incomodava nunca, mas aquele dia em especial, na hora do almoço, foi um pouco puxado, confesso. Tentei quebrar o gelo soltando uma piadinha: Tem uma conta no Twitter chamada “White people problems”. Você sabe inglês, não é? Ou pelo menos sabe o suficiente para entender onde eu quero chegar.
Ela não riu. Tentativa de humor fracassada com sucesso. Logo me perguntou quantos pilares a gente pode abrir mão sem que o nosso alicerce desmoronasse? Eu, sinceramente, não sei. Não faço ideia. “Não é um deslize. Sinto que estou desabando como as casas, após as chuvas de verão, que resultam em mortes e destruição. Por quantos perrengues uma pessoa precisa passar até conseguir alcançar seus anseios? Até agora foram 15 anos de aborrecimento com um chefe que não se importa comigo, que convive dia a dia, mas não me conhece. Você sabe o quanto eu já chorei no banheiro da firma? Eu ando com colírio na bolsa. Não é um relacionamento saudável. Aguentei tudo em nome do sonho da casa própria. Depois, foi a novela para usar o meu FGTS. Eu tive que provar tantas vezes que eu sou eu. Olha, chegou um momento que até eu passei a duvidar. Será que eu roubei a identidade dessa pessoa e depois tive amnésia? Loucura. É isso que os bancos fazem com a gente. E a construtora também não é santa. No capitalismo não há espaço para inocência. Foram 6 fucking meses para pegar a chave. O que não foi um problema tão grande porque meu casamento foi desmarcado por causa da pandemia”.
Questionei se havia nova data até para que eu pudesse me programar para atravessar o oceano Atlântico. Para minha assombrosa surpresa, ela me disse que descobriu que aquele puto (nunca gostei dele) estava saindo com uma colega de trabalho dela (também nunca gostei dessazinha). Ela descobriu fazia umas duas semanas, por isso não respondia mais as mensagens matinais. Foi assim: ela resolveu tomar um sorvete, estava um dia terrivelmente quente e o ar-condicionado não estava sendo ligado por causa do vírus. Mandou uma mensagem para o puto avisando que ia ao shopping, para que ele não se preocupasse por conta da demora. Na cabeça dele, ela iria fazer comprar e demorar horas, só que ela tomou só uma casquinha e partiu para a casa dele. Chegando lá, pegou os dois na cama, pelados. O olho esquerdo tremia. Sacou seu colírio da bolsa e pingou. A segunda reação foi abrir uma mala e ir juntando as tralhas dela. Não proferiu palavra alguma. “Tenho medo de morrer entalada por causa deles. Não bastasse isso, a obra…”
Para o seu consolo, não conheço uma viva alma que fez obra e não se estressou. Se há algo em comum na humanidade, para além das questões biológicas, é que estar em obras é estar com os nervos à flor da pele.
Minha tentativa de consolo malogrou. Ela ficou enfurecida.
“Não estou pedindo favor. Eu paguei com o dinheiro que ganhei sendo esmagada todos os dias durante quatro horas no transporte público. Eu troquei pelo meu frescor, pela minha juventude. Eu precisei ouvir que sou paga para executar e não para pensar. Eu paguei!!! (Tão alto que quase não precisaríamos de telefone para que eu pudesse ouvir do outro continente). Por que nem assim eu sou respeitada? Por que nem as relações meramente comerciais dão certo? Eu preciso de ajuda. Você está formada! Tem sua carteirinha da OAB. Será útil! Eu me vi dando socos na boca e pontapés, rasgando contratos e cuspindo na cara das pessoas. Sabe o que é pior? Eu fiquei mais calma depois disso!”
A agressão ocorreu apenas nos pensamentos dela e, ainda bem, pensar não é crime. Se é pecado já não sei, porém deduzo que seja. Aqui, estamos nos referindo ao Direito à perversão que, no Direito Penal, consiste em planejar atos contrários à lei sem exteriorizá-los. Como ela não é nem doida de postar um tipo de coisa como essa em redes sociais sem falar comigo, fiquei tranquila. Expliquei que era preciso pensar em ações dentro da lei. Do mesmo jeito que se firma um contrato, desfaz. Reincidir o acordo firmado anteriormente é chamado de distrato e é legal nos dois sentidos: está dentro da lei e fará bem a saúde mental dela.
Ao longo da conversa, percebi que ela se acalmou. Algo que eu disse a fez desistir de desistir. Foi nesse momento que ela me disse que não desejava um grande mal nem para alguém que até meia hora antes era o alvo do seu ódio: arquitetos, mestres de obra, pedreiros, ajudantes, lojas de material de construção… Que a conversa foi a caçamba que ela precisava para entulhar o que sobrou da negação, do isolamento, da raiva, das tentativas de barganha e da depressão. Finalmente, ela aceitava que passava aquilo porque precisava passar.
Quando questionada, de seus lábios saiu algo que soou como música para os meus ouvidos:
“Sinceridade é uma das suas melhores qualidades! ‘Sincero’ é de origem romana e reza a lenda que eles fabricavam vasos e consertavam as falhas com uma cera especial, mas quando a peça era aquecida por quaisquer que fossem os motivos, a cera derretia e as imperfeições eram reveladas. Foi daí que as pessoas começaram a comprar peças “sine ceras” (sem ceras), ou seja, sinceras como você: meu vaso valioso!”
Tenho que admitir, naquele exato momento, meus olhos se encheram de lágrimas. Ouvir de uma grande amiga que ela preza pela minha sinceridade é algo tocante. Ela notou que mexeu comigo, claro, e completou: “Não seja boba! Eu li isso em alguma parte da internet. A etimologia verdadeira é latina ‘sincerus’ e significa ‘é limpo ou puro’. Você é muito emocionada, menina! Agora preciso ir, vou escolher o piso. Fique de olho no seu celular porque eu vou te mandar muitas fotos. Bom almoço!”

https://pixabay.com/pt/photos/ponte-ponte-de-madeira-corrim%c3%a3o-4562163/

A Mulher do Fim do Mundo que veio do Planeta Fome e cantou até o fim: muita luta e muito luto.

Textos de sexta: 3/52

“Na avenida deixei lá
A pele preta e a minha voz
Na avenida deixei lá
A minha fala, minha opinião
A minha casa, minha solidão
Joguei do alto do terceiro andar
Quebrei a cara e me livrei do resto dessa vida
Na avenida dura até o fim
Mulher do fim do mundo
Eu sou e vou até o fim cantar”.

Esse é um trecho da música de 2017, “A Mulher do Fim do Mundo” (Romulo Fróes e Alice Coutinho), que faz parte do álbum homônimo.

Sim, estamos falando de Elza Gomes da Conceição, que ficou conhecida pelo seu nome artístico Elza Soares. Nasceu em 2 de junho de 1930 no Rio de Janeiro e nos deixou em 20 de janeiro de 2022 aos 91 anos. Teve um casamento arranjado pelo pai, sofreu violência doméstica e sexual, teve seu primeiro filho muito jovem (aos 13 ou 14 anos), depois mais um filho e ambos morreram de fome, seu marido teve tuberculose, ficou viúva aos vinte e um, teve uma filha que foi sequestrada, casou-se com o Garrincha, teve um filho e se separou dezesseis anos depois. Esse filho morreu aos nove anos em um acidente de carro. Depressão. Tentativa de suicídio. Esses fatos todos são uma parte da biografia dessa mulher incrível.
Um dia ela descobriu que cantava e cantou até o fim.
Apenas 3 semanas antes de sua partida, ela postou em seu canal de Youtube a gravação da música “Meu Guri” com Agnes Nunes.

“Quando, seu moço, nasceu meu rebento
Não era o momento dele rebentar
Já foi nascendo com cara de fome
E eu não tinha nem nome pra lhe dar
Como fui levando, não sei lhe explicar
Fui assim levando ele a me levar
E na sua meninice
Ele um dia me disse que chegava lá
Olha aí!
Olha aí!
Olha aí!
Ai, o meu guri, olha aí!
Olha aí!”
(Chico Buarque)

Dos 8 filhos que teve, ela perdeu dois filhos devido à desnutrição, um por acidente e um por doença.
Ela cantava e havia um programa do Ary Barroso que estava com um prêmio acumulado. Ela tinha bocas para alimentar e foi lá buscar esse prêmio! Não havia comida, imagina se haveria roupa ou calçado bonito para se apresentar. Foi como deu para ir. Debocharam dela e o Ary perguntou:

— O que você veio fazer aqui?
— Eu vim cantar!
— Me diz uma coisa, de que planeta você veio?
— Do mesmo planeta que o seu, Seu Ary.
— E qual é o meu planeta?
— PLANETA FOME!
Quem ria, parou na hora. Ela cantou a música “Lama” e ganhou o prêmio!

“Se quiser fumar eu fumo
Se quiser beber eu bebo
Não interessa mais ninguém
Se o meu passado foi lama
Hoje quem me difama
Viveu na lama também”

Após ouvi-la, só restou para Ary Barroso dizer:
— Acaba de nascer uma estrela.

Em entrevista, muitos anos depois, ela conta essa história e reflete:
— Não sei se me considero uma estrela, não. Eu me considero, assim, um soldado raso, eu me considero um trabalhador pela música.

Contei toda essa história por dois motivos: homenagear a grande Elza Soares e tecer duas considerações:
1ª Se ela tivesse alternativa, será que ela teria ido ao programa de calouros mesmo assim?
Quando a gente tem opção (ou acha que tem) é bem fácil acreditar em qualquer coisa que nos faça desistir de tentar.
2ª Não existe ideia idiota e nem pergunta besta, mas é tão fácil ser convencido do contrário.
Às vezes, a ideia só precisa ser lapidada ou adaptada.
— E se fizéssemos Jornalismo com histórias em Quadrinhos?
— Que ideia idiota! Ter todo o trabalho de desenhar para virar banheiro de pet no dia seguinte?

Algumas ideias precisam cozinhar lentamente, em banho-maria, em vez de serem simplesmente fritadas.
Hoje existe Jornalismo em Quadrinhos e um nome forte é Joe Sacco.
A Agência Pública também trabalha com essa linha: Mulheres da Craco e Meninas em Jogo são dois exemplos do que estou dizendo.

As crianças e a fase dos porquês são a prova de que não há pergunta besta, mas a gente cresce e finge que sabe das coisas por vergonha de perguntar.

“Por que os ossos doem
Enquanto a gente dorme?
Por que os dentes caem?
Por onde os filhos saem?”
Oito anos (Dunga / Paula Toller)

Músicas
Mulher do Fim do Mundo: https://youtu.be/6SWIwW9mg8s
Meu Guri: https://youtu.be/8PS1X4OZZyM
Elza Soares, de que planeta você veio: https://youtu.be/9NVo62or4oc
Oito Anos: https://youtu.be/45u5NmUDxgI

Jornalismo em quadrinhos
Mulheres da Craco: https://apublica.org/hq/2020/10/hq-mulheres-da-craco/
Meninas em Jogo: https://apublica.org/hq/2014/05/hq-meninas-em-jogo/

Coisas estranhas acontecem no cemitério


304/365

Nascemos com a certeza de que todos vamos morrer. Não sabemos quando, onde, como ou por quê.
Não somos preparados para lidar com a morte, nem sentimental, nem burocraticamente falando. É um vazio que nunca mais será preenchido, diferente de um cem números de documentos.
Nos filmes, as pessoas vão em velórios e enterros vestidas de preto, pois é a cor que simboliza o luto. Na vida real, é geralmente tudo tão inesperado que a última coisa que vamos nos preocupar é com o figurino.
Aconteceu. Mãe de uma amiga. Eu a chamava de tia. Eu fiquei em choque, mas não podia. Do outro lado da linha tinha alguém que precisava que eu agisse. Eu nem chorei na hora. Eu fiz os telefonemas que precisava fazer e fiz de tudo para ser útil e presente.
Muitas coisas estranhas podem acontecer em um cemitério. Por exemplo, estranhos querendo tomar qualquer decisão que só cabe à família.
Num dado momento, mesmo sabendo que eu não deveria chorar porque o meu papel ali era outro, eu sai para respirar um pouco.
— Vou procurar a sepultura da minha vó, tudo bem?
— Tudo. Eu tô bem, pode ir.
O cemitério era bonito, com um gramado grande e muito bem cuidado. Os túmulos eram placas pequenas de cimento no chão e uma placa com foto e as datas. Perto da minha vó tinha uma árvore, nunca vou me esquecer, meu vô escolheu ali porque a minha vó sempre gostou de uma sombrinha e com essa única referência sai procurando.
Fui andando com cuidado e lendo as plaquinhas no chão. Deparei-me com uma ave que havia botado seus ovos ali e estava cuidando do ninho e da ninhada recém-nascida. Curiosa que sou, aproximei-me e, sem fazer a menor ideia de que isso poderia acontecer, quase fui atacada. Ela sobrevoava a minha cabeça e gritava de forma estridente. Eu não sei qual ave era, mas não era pequena. Eu devo ter gritado ou grunhido, com certeza. Deixei de andar cuidadosamente, comecei a me esquivar depressa, devo ter pisado em algum túmulo, não teve jeito. Ela veio com tudo, eu me abaixei igual à cena clássica do Neo no filme Matrix. Respirei aliviada, não tomei nenhuma bicada. Dei mais dois passos, ela veio de novo. Eu me virei para esquerda, depois para direita, abaixei novamente. Ela gritou e junto com ela gritou a minha amiga, rindo:
— O que você tá fazendo?
Virei, fingindo uma suposta naturalidade e falei que não era nada, logo percebi que todo mundo assistiu à minha cena, que vergonha.
Pelo menos, arranquei uma risada num momento tão difícil.

Montanha-russa dos sentimentos

293/365

O poeta é um transformador.
Gesta conceito,
pare palavra
cria imagem.
Que coragem!
Andar sempre na corda-bamba entre o bonito e o piegas.
É uma necessidade já que a vida,
muitas das vezes,
se vai sem despedida.
A saudade não tem grandeza, pois não pode ser medida.
A saída é se embrenhar
na rotina,
na nicotina,
na Fluoxetina.
Na montanha-russa de sentimentos
é possível subir o morro dos bons momentos
e descer, de repente, a ladeira da memória
com uma bicicleta sem freio.
Chegar lá embaixo com tudo.
Arrancar o tampo do joelho.

Última impressão

222/365

Duas amigas de escola se encontram dez anos após o Ensino Médio.
Elas combinam um café e ambas vão bem arrumadas. Lá no fundo, uma sabe da curiosidade da outra.
Começou com aquela educação em excesso.
— Nossa! Você tá ótima! Quase 30 anos e essa pele de pêssego.
— É que eu me cuido muito.
— Trabalha na área da beleza?
— Sim!
— O que você faz?
— Sou maquiadora.
— Nossa! Maquiadora de casamento? Que luxo! É o que fica registrado nas fotos e nos filmes para sempre. Combina demais com você. Sempre gostou de se arrumar, de se cuidar, de passar uma ótima impressão.
— Na verdade, eu cuido da última impressão.
— Ahn?
— Sou necromaquiadora.
— Credo! Você faz maquiagem em gente morta?
— Credo por quê? Você nunca perdeu alguém querido? Saiba que a imagem que você tem guardada da pessoa, naquele último momento, de despedida, de dor e de luto, tinha um profissional por trás que atuou para amenizar o aspecto da doença e melhorar a feição do seu ente querido. Uma pessoa que estudou para aprender técnicas, pois, uma pele sem vida não absorve a maquiagem da mesma forma. Sem contar com a sensibilidade e a sensatez que precisamos ter para analisar qual maquiagem é mais adequada e combina mais com a pessoa que se foi. Você também não mudou nada. Continua insensível como sempre! Agora tá explicado o porquê de termos ficamos uma década sem nos encontrar.
— Desculpa! É que foi uma quebra de expectativa muito grande, sabe? Tô te vendo aí toda chique. Pensei que era maquiadora de famoso até. Mil perdões. Como você entrou nessa profissão? Existem cursos específicos para a formação de necromaquiadores ou profissionais formados em maquiagem e em estética apenas já podem atuar na área?
— Há curso específico. Eu estava desempregada depois que resolvi largar o telemarketing de vez, voltando de mais uma entrevista de emprego frustrante e vi o anúncio do curso de necromaquiagem no ônibus. Primeiro, eu pensei: “Quem iria querer trabalhar com isso?”. De certa forma, eu fui tão sem noção internamente quanto você. Aquilo ficou na minha cabeça. Eu tinha tirado uma foto da escola e resolvi ir lá conhecer. Hoje eu me orgulho muito, trato a memória da pessoa com todo respeito e sou muito boa no que faço. Eu ganho o dia quando algum funcionário da funerária diz que ouviu um amigo ou familiar dizer que a pessoa estava com uma expressão serena ou que nem parecia que real porque a pessoa tava ali da mesma forma como ela era em vida. E você? Também tá chique! Tá trabalhando com o quê?
— Ainda tô no telemarketing.
— Ah!

Saudades – 04.05.2021

124/365

Nem as cores mais bonitas e vibrantes serão capazes de colorir essa Aquarela
Hoje é só Saudades,
tragédias, lutos, dores, assassinatos, 3 bebês, 2 educadoras, um facão de 80 cm e vidas ceifadas,  futuros interrompidos…

Imagem: https://pixabay.com/pt/illustrations/preto-e-branco-aquarela-4779666/

Ensaio sobre o efêmero: a escolha e o inevitável

O fio que costura esse tecido é o efêmero. Dado que vivemos em uma sociedade capitalista que valoriza o “ter” em detrimento do “ser”, em que tudo é muito fugaz e é preciso ser produtivo a cada minuto, partiremos desses pressupostos para refletir sobre as nossas possibilidades de escolhas, suas consequências e como interpretamos o que se impõe como inevitável. Os retalhos utilizados serão: a vida, a morte, a felicidade, o tempo, a memória e o luto, de forma interligada e não-linear.

A vida não tem ensaio e nem manual de instruções. É, por natureza, efêmera tal qual coisa que dura apenas um dia, como um story em alguma rede social ou ainda algo “precário, provisório, perecível, falível, transitório, transitivo…”, como canta Lenine¹. Ao longo do tempo, construímos uma jornada repleta de escolhas e também nos deparamos com situações inevitáveis.
A única certeza da vida é que temos um prazo de validade. Uma
drosophila melanogaster, a mosca-da-fruta, tem uma expectativa média de vida de 60 dias. É possível fazer algo extraordinário num espaço ínfimo de tempo e o curta-metragem “Para chegar até a Lua”² comprova isso ao contar a emocionante história de Jaime, uma mosquinha que possui pouco tempo de vida. Ele é ingênuo, não sabe sobre a sua finitude, mas possui um objetivo claro e traça sua trajetória com inspiração. Fora da ficção, essa espécie de inseto é uma das nossas cobaias prediletas, pois 60% do seu genoma é idêntico ao dos humanos e isso possibilitou que pesquisadores conquistassem 6 prêmios Nobel.³
O imaginário popular nos induz a ter atitudes notáveis como, ao menos,
escrever um livro (em tempos de tweets), plantar uma árvore (quando as moradias são cada vez menores) e ter um filho (mesmo sem uma rede de apoio sólida). Por falar em fatos grandiosos, a Apollo 11 alunizou em 1969 e isso é de conhecimento de todos os não-negacionistas, mas que as drosophilas foram para o espaço antes, acredito que pouca gente saiba. Elas tornaram-se astronautas em 1947.
Será que essa obsessão por deixar um legado é uma forma que arrumamos de driblar a morte? Há um caso bem emblemático de uma personagem que conseguiu ludibriar a morte duas vezes e, como resultado dessas escolhas, recebeu um suplício terrível. Eu me refiro ao mito de Sísifo4, que foi condenado a rolar uma pedra até o cume de uma montanha e ela inevitavelmente caia ao chegar no topo e ele precisava repetir esse processo durante toda a eternidade. Era um trabalho inútil e sem esperança. É possível encontrar sentido na vida ao realizar as mesmas ações repetidas vezes? Sartre5 afirma que:

Dizer que nós inventamos os valores não significa outra coisa senão
que a vida não tem sentido a priori. Antes de alguém viver, a vida, em
si mesma, não é nada; é quem a vive que deve dar-lhe um sentido; e
o valor nada mais é do que esse sentido escolhido.

O ser humano, muito bem observado por Darwin, é capaz de se
adaptar a ambientes hostis, assim como o arrogante meteorologista Phil
Connors no filme “Groundhog day”6, traduzido em português como “Feitiço do tempo”. Ele vai cobrir mais uma vez um evento anual intitulado “O Dia da Marmota”, em que o animal prevê ou não a antecipação da primavera. O repórter odeia a cidade-sede da festividade e seus habitantes, considera esse trabalho enfadonho e deseja fazer tudo rapidamente e ir embora. Porém, de repente, ele se vê preso no tempo e repetindo inúmeras vezes o dia 02 de fevereiro. Com a sua memória funcionando perfeitamente, ele se vê obrigado a reviver aquela data, encontrando as mesmas pessoas e vendo tudo se repetir. Ele passa por muitos estados de espírito: acredita estar louco, tenta se suicidar, sente-se depressivo, procura tirar vantagens em várias situações e aos poucos ele percebe que por estar num ciclo aparentemente infinito, ele pode fazer qualquer coisa e acordar novamente às 6h da manhã no mesmo quarto. É como se fosse um Deus. Essas percepções vão alterando a personalidade e os posicionamentos dele ao longo da trama.
Tanto no “mito de Sísifo” quanto no “Feitiço do Tempo”, se a repetição
tivesse sido em relação a uma tarefa agradável ou um dia repleto de
acontecimentos aprazíveis, será que ainda seria considerada um castigo?
Se você pudesse escolher viver uma vida cheia de desafios e dificuldades
ou reviver milhares de vezes um dia feliz, o que você escolheria?
A beleza da felicidade é o fato de ser sempre efêmera, de “que tudo
era pra sempre, sem saber que o pra sempre, sempre acaba”7. O
fundamental é a quantidade de momentos encantadores ou a qualidade desses episódios? Não importa muito qual desses caminhos seja o escolhido, o essencial é o Carpe Diem, expressão latina que pode ser
traduzida como “aproveite o dia”. Esse lema, retirado de um poema de
Horácio, é exposto pelo professor de literatura John Keating no filme “Sociedade dos Poetas Mortos”8 e inspira muitos de seus alunos. Quando os aprendizes começam a agir de forma inconsequente, visto que só se vive uma vez, o mestre profere o seguinte discurso: “Na vida há tempo para se arriscar e tempo para se ser cauteloso e um homem sensato sabe qual é a altura certa para cada uma destas coisas”. Epicuro9 corrobora esse pensamento ao dizer que “a prudência é o princípio e o supremo bem, razão pela qual ela é mais preciosa do que a própria filosofia…”.
A prudência é necessária tanto para autoproteção quanto para pensar na
conservação dos recursos para as gerações futuras. Viver como se fosse o último dia, sabendo que há grandes chances de não ser, é o que está nos
deixando doentes: nós e o planeta. Quanto a nós, podemos nos deparar com barreiras psicológicas tais como o excesso de passado, também nomeado como depressão; ou o excesso de futuro, conhecido como ansiedade. Quanto ao mundo, podemos falar sobre o aquecimento global, a destruição de solos produtivos, o exagero de lixo produzido e a poluição das fontes de água potável, por exemplo.
Uma grande mudança é como um sapo em uma panela de água fria.
Se ele fosse jogado em uma panela de água fervendo, ele logo pularia fora, mas se fosse colocado em um recipiente com água fria, aquecendo
lentamente, ele se adaptaria e acabaria morrendo sem perceber que já era tarde demais para pular. As pequenas atitudes e as escolhas são o que, ao tomar grandes proporções e fugir de nosso controle, ainda nos permitem olhar para trás e dizer que era algo inevitável. Diante dessas reflexões, Roman Krznaric10 salienta que:

Quando fazemos a escolha consciente de aproveitar o dia, mesmo
quando nossas opções são limitadas pela circunstância, estamos
nos comprometendo a sermos seres ativos, e não passivos, a
seguir nosso próprio caminho, em vez daquele determinado para
nós, a viver o momento, em lugar de esperar pelo próximo. E com
esse ato de decisão ganhamos um sentido de propósito ao nos
tornarmos os autores de nossa própria vida. Escolho, logo existo.

Ele argumenta também que o “carpe diem” foi sequestrado pelo
capitalismo. A publicidade se apropriou desse conceito e criou um ideal de eterna juventude. A velhice e a morte estão cada vez mais distantes da sociedade. Os idosos são enviados para casas de repouso e os doentes não podem mais morrer em casa e, assim, as crianças são poupadas de
conhecer o fim do ciclo da vida.
O ponto é que, inexoravelmente, teremos contato com a finitude: das vidas daqueles que amamos, dos momentos, das sensações… Mas, para termos consciência dessas perdas, é preciso que as lembranças existam.
As memórias, no filme “Divertida mente”11, são representadas como
esferas guardadas em prateleiras e que podem tanto ser resgatadas a
qualquer momento quanto esquecidas com o passar do tempo. Há muitas definições para memória e, em linhas gerais, podemos dizer que é uma faculdade da mente pela qual a informação é codificada, armazenada e recuperada. Para o podcast “Naruhodo”12, em seu episódio 78, esse desenho é muito bom para explicar emoções, mas é muito ruim para falar de memória, pois ela não é uma coisa que fica guardada, é um processo. E não é recuperada e sim, reconstruída pois o ambiente atual transforma essa lembrança. Uma analogia melhor seria um carimbo no papel. Um carimbo batido com pouca força seria uma memória de curto prazo, um carimbo com a tinta mais forte poderia representar as memórias de longo prazo. Dentro do nosso cérebro esses processos não acontecem de forma isolada, então podemos pensar na memória como um mosaico de carimbos. No limite, nunca lembramos de nada, reconstruímos as memórias que resgatamos desses carimbos dependendo do contexto, do ambiente e da nossa necessidade. Viver histórias juntos e ser capaz de lembrar e recontar gera uma união. A perda das memórias nos incapacita de reconhecer o outro e a nós mesmos.
Segundo Epicuro, “a morte é justamente a privação das sensações. A consciência clara de que a morte não significa nada para nós proporciona a fruição da vida efêmera, sem querer acrescentar-lhe tempo infinito e eliminando o desejo de imortalidade”9. Façamos com que a morte deixe de ser um tabu e que aprendamos a respeitar o luto para além do que diz a Consolidação das leis do Trabalho. Afinal de contas, não me parece que “até 2 (dois) dias consecutivos, em caso de falecimento do cônjuge, ascendente, descendente, irmão ou pessoa que, declarada em sua carteira de trabalho e previdência social, viva sob sua dependência econômica”13 seja um tempo suficiente para nos recuperarmos física, psicológica e emocionalmente da perda.
Luto não ocorre só em casos de morte e muitas vezes é confundido com
melancolia. Para Freud, “no luto, o enlutado sabe o que perdeu, ele sofre uma perda real; na melancolia, o melancólico apresenta um sofrimento intenso de perda, uma perda que pode também ser real ou ideal, mas sem saber de fato o que perdeu na perda sofrida”.14
Para os males inevitáveis, Freud explica: “não posso ser um otimista e
acredito que me distingo dos pessimistas apenas porque as coisas cruéis, estúpidas e sem sentido não me perturbam, pois desde o começo aceitei-as como parte daquilo de que é feito o mundo”.14 Sendo assim, continuaremos a escolher os antídotos que a arte, nas suas mais variadas facetas, a religião, a filosofia, a ciência e a política podem nos oferecer.

NOTAS
1 VIVO. [Compositores]: Lenine e Carlos Rennó. [intérprete]: Lenine. Paris:
Lenine in Cité, 2004. Disponível em: http://www.lenine.com.br/discografialenine/in-cite/. Acesso em: 20 jul. 2020

2 PARA chegar até a lua. Direção: Jose Guillermo Hiertz. Produção: Diego M. Doimo. São Paulo: 2006. (10 min). Disponível em: http://portacurtas.org.br/filme/?name=para_chegar_ate_a_lua. Acesso em: 26 jul. 2020

3 VAIANO, Bruno. Nada de ratinhos: foi uma mosca que ganhou seis prêmios Nobel. Conheça a Drosophila melanogaster e entenda como ela foi de inseto doméstico a rainha dos laboratórios. Super Interessante, 2017. Disponível em: https://super.abril.com.br/ciencia/nada-de-ratinhos-foi-uma-mosca-que-ganhouseis-premios-nobel/. Acesso em: 01 ago. 2020

4 CABRAL, João Francisco Pereira. O mito de Sísifo e sua conotação
contemporânea. Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/filosofia/o-mito-sisifo-sua-conotacao-contemporanea.htm Acesso em: 21 jul. 2020

5 SARTRE, Jean-Paul. O Existencialismo é um Humanismo. Tradução de
Vergílio Ferreira. 4. ed. Lisboa: Editorial Presença, 1970, p.17.

6 GROUNDHOG day. Direção: Harold Ramis. Produção: Trevor Albert e Harold Ramis. Estados Unidos da América, 1993. (101 min.)

7 POR enquanto. [Compositor]: Renato Russo. [intérprete]: Legião Urbana. In Legião Urbana, 1985. Disponível em: https://www.letras.mus.br/legiao-urbana/46970/ Acesso em: 28 jul. 2020

8 SOCIEDADE dos Poetas Mortos. Direção: Peter Weir. Produção: Paul Junger Witt, Steven Haft e Tony Thomas. Estados Unidos da América, 1989. (128 min.)

9 EPICURO. Carta sobre a felicidade: (a Meneceu). Tradução e
apresentação: Álvaro Lorencini e Enzo Del Carratore. São Paulo: Editorial
UNESP, 2002.

10 KRZNARIC, Roman. Carpe diem: Resgatando a arte de aproveitar a vida. Tradução: Maria Luiza X. de A. Borges.1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

11 DIVERTIDA mente. Direção: Pete Docter. Estados Unidos da América, 2015. (102 min.)

12 Podcast “Naruhodo” episódio 78. Disponível em:
https://www.b9.com.br/shows/naruhodo/naruhodo-78-como-funciona-memoria/. Acesso em: 01 ago. 2020

13 Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) – Art. 473, inciso I. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm. Acesso em: 12 jul. 2020

14 FREUD. Luto e Melancolia. Disponível em: https://clinicasdotestemunhosc.weebly.com/uploads/6/0/0/8/60089183/luto_e_melancolia_-_sigmund_freud.pdf. Acesso em: 15 jul. 2020.